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O calendário astronômico do povo sambaqui: uma interpretação para as inscrições rupestres do Morro das Aranhas, na Praia do Santinho, da Ilha de Santa Catarina, Brasil

  • fabriciosouzaneves
  • há 13 minutos
  • 8 min de leitura

Por F. S. Neves

(Este texto é um resumo em português, baseado no artigo publicado em International Journal of South American Archeology, intitulado An Astronomic Calendar by the Neolithic Sambaqui Culture of the Costal Petroglyphs on Santinho’s Beach, Santa Catarina Island, Southern Brazil, em novembro de 2025. A publicação pode ser acessada em http://ijsa.syllabapress.us/en/article/ijsa00102 e o texto completo do artigo encontra-se disponível em https://cloud.syllabapress.us/vizor/7435427.29818x/ )


No costão sul da Praia do Santinho (o “Morro das Aranhas”), na Ilha de Santa Catarina, há um conhecido conjunto de inscrições rupestres (petroglifos, “inscrições na pedra”), provavelmente feitas pelos povos dos sambaquis (povos sambaquieiros), que habitavam o litoral sul do Brasil entre 8.000 e 2.000 anos atrás.

“Sambaqui” é o nome dos grandes montes de conchas organizados por estes povos que serviam, provavelmente, como locais cerimoniais e funerários. Nos sambaquis, os sambaquieiros depositavam com respeito os corpos dos mortos e iam reverenciar sua memória periodicamente.

Era um povo caçador-coletor e em sua dieta era muito presente o consumo de moluscos com conchas. As conchas eram uma sobra abundante e serviram como material para construção dos sambaquis.

Outros vestígios dos povos dos sambaquis são os artefatos e trabalhos em pedra polida. Oficinas líticas (“de pedra”) são encontradas em vários locais nos costões rochosos das praias catarinenses, na forma de traços e bacias de “amolação” e “afiação” de instrumentos nas rochas. Perto destes locais, encontram-se artefatos de pedra com borda cortante ou romba, que deviam servir como instrumentos de trabalho ou de luta.

Perto destes locais, há algumas regiões com painéis de inscrições nas faces rochosas dos costões. A proximidade física entre os sambaquis, oficinas líticas e inscrições rupestres sugerem que todos foram feitos pelos mesmos povos sambaquieiros.

Qual o significado das inscrições? Ainda não se sabe. Mas na inscrição do Morro das Aranhas, Praia do Santinho, podemos interpretar seu sentido, identificando sua finalidade.

Atualmente, o painel de petroglifos do Morro das Aranhas, na Praia do Santinho, está protegido por uma pequena cobertura e acessível aos visitantes por uma passarela de madeira, mantida pelo hotel “Costão do Santinho”, vizinho ao local. O visitante, na passarela, consegue observar o painel de inscrições de frente para o costão rochoso, olhando para a direção oeste. Desta posição, às suas costas, está a direção leste e o mar. A imagem que ele vê está na Figura 1, abaixo.


Figura 1. Vista das inscrições rupestres do Morro das Aranhas, Praia do Santinho, Ilha de santa Catarina. A foto mostra a visão de quem está na passarela, de frente para o costão rochoso, olhando em direção oeste. O mar está às costas do observador, a leste. Percebem-se cinco inscrições rupestres e, infelizmente, uma inscrição atual indevidamente feita no local (um coração com duas letras).
Figura 1. Vista das inscrições rupestres do Morro das Aranhas, Praia do Santinho, Ilha de santa Catarina. A foto mostra a visão de quem está na passarela, de frente para o costão rochoso, olhando em direção oeste. O mar está às costas do observador, a leste. Percebem-se cinco inscrições rupestres e, infelizmente, uma inscrição atual indevidamente feita no local (um coração com duas letras).

As inscrições do Morro das Aranhas estão localizadas em uma face da rocha voltada para o mar, “olhando” para a direção leste. A Praia do Santinho é uma praia de mar aberto, voltada para o Oceano Atlântico a leste/sudeste, não havendo obstáculos para a visão do horizonte marítimo nesta direção.

A maioria das figuras está inscrita em uma face quase horizontal da rocha, mas algumas estão inscritas em uma face vertical, mais superior, da rocha. Nesta face vertical, se destaca um desenho redondo, formado por três círculos concêntricos. De

cada lado do círculo, há dois traços que dão um aspecto de “cantos” laterais ao círculo. Parece muito um olho humano. É possível se sentar ou se deitar, bem diante deste olho, encostando-se na parede vertical da rocha, e olhar para o horizonte em frente, a leste.

O observador neste local pode ver, à sua frente, a principal figura do painel de petroglifos, logo abaixo da linha do horizonte marítimo. A Figura 2 mostra a visão do observador neste local, olhando para leste. A foto foi feita ao nascer do sol, no dia 21 de julho de 2025. Deste ângulo de visão, é possível utilizar as linhas que formam a figura principal do petroglifo como uma “bússola” para auxiliar o observador a analisar a posição do nascer do sol.


Figura 2. O nascer do sol visto pelo observador no costão rochoso, olhando para leste. Pode-se ver a passarela de visitação ao local e a figura principal dos petroglifos, na parte inferior da figura.
Figura 2. O nascer do sol visto pelo observador no costão rochoso, olhando para leste. Pode-se ver a passarela de visitação ao local e a figura principal dos petroglifos, na parte inferior da figura.

De fato, quando aplicamos a imagem da bússola sobre a figura, observamos que o desenho está alinhado com as principais posições astronômicas do nascer do sol ao longo do ano. Na figura 3 observa-se que o eixo principal da figura está alinhado com o nascer do sol no solstício de verão, a cerca de 116 graus, sudeste (Posição “1”). A linha seguinte na figura, em direção ao norte, marca o nascer do sol no equinócio (outono ou primavera), a 90 graus, leste (Posição “2”). Há uma linha marcando uma posição intermediária (“3”) e a última linha aberta da figura, a posição “4”, marca a direção do nascer do sol no solstício de inverno, a cerca de 63 graus, a nordeste.


Figura 3. O alinhamento astronômico da figura principal dos petroglifos do Morro das Aranhas, Praia do Santinho, Ilha de Santa Catarina.
Figura 3. O alinhamento astronômico da figura principal dos petroglifos do Morro das Aranhas, Praia do Santinho, Ilha de Santa Catarina.

Podemos interpretar as figuras dos petroglifos, destacadas com cores na Figura 4, como elementos de um calendário astronômico.


Figura 4. A mesma fotografia da Figura 1, destacando em cores as diferentes figuras dos petroglifos e sua interpretação como um calendário astronômico.
Figura 4. A mesma fotografia da Figura 1, destacando em cores as diferentes figuras dos petroglifos e sua interpretação como um calendário astronômico.

Sentado no local marcado com a figura do “olho”, o observador pode olhar para o horizonte e identificar a posição do nascer do sol na figura principal, entre as posições 1,2,3 e 4, que pode servir como um calendário solar. Destacamos estas linhas com as cores vermelhas na Figura 4. Iniciando no verão, o observador veria o sol nascer na posição 1 (no final do atual mês de dezembro) e se deslocar, gradualmente, até a posição 4 (no final do mês de junho). Neste trajeto, o nascer do sol passa por uma posição central, “2”, que marca o equinócio astronômico (ao final do atual mês de março), e por uma posição intermediária “3”, a meio caminho entre o equinócio e o solstício de inverno. É possível que a posição “3” (que corresponde ao atual mês de maio) servisse como um marcador da mudança no clima antecedendo a chegada do inverno. Na região da Ilha de Santa Catarina, é após o “veranico de maio” que costuma acontecer uma súbita mudança do tempo, com quedas nas temperaturas e a correspondente diminuição nas possibilidades de caça, pesca e coleta de moluscos. Podemos supor que ao ver o sol nascer na posição “3” o sambaquieiro poderia antecipar que nos três meses seguintes deveria deixar a Praia do Santinho, de mar aberto, que receberá os ventos frios do Sul, e procurar abrigo em praias mais abrigadas, nas baías internas da Ilha de Santa Catarina. Ao alcançar a posição “4”, do solstício de inverno (final de junho), o sol completa o primeiro semestre solar do ano, e sua posição de nascimento no horizonte começa a se deslocar no sentido oposto, da posição “4”, passando pelas posições “3” (fim do período de maior frio, em agosto) e pela posição “2” (equinócio astronômico, agora da primavera, ao final de setembro) até retornar à posição “1” novamente, completando o segundo semestre solar e o ciclo completo de um ano.

O observador que acompanha a posição do nascer do sol como marcador da passagem do tempo no calendário solar (linhas vermelhas) pode utilizar o petroglifo lateral (destacado com as linhas brancas na Figura 4) como um calendário lunar auxiliar. Este calendário lunar é composto por uma linha, ao longo da qual estão gravadas seis figuras romboides em sequencia, cada uma delas formada por dois triângulos justapostos pelas bases. Ao todo, há doze triângulos, seis de cada lado da linha. O observador pode contar os ciclos lunares, iniciando a partir do solstício de verão (nascer do sol na posição “1”), e assim ter mais precisão na contagem do passar do tempo: cada ciclo solar tem 28 dias e corresponde a um mês atual do calendário (ocorrem doze ciclos lunares ao longo de um ano). Podemos supor que os seis triângulos de um dos lados da linha correspondem aos seis ciclos lunares (“meses”) do primeiro semestre solar do ano, que o observador poderia ir marcando no mesmo sentido do movimento do nascer do sol (de baixo para cima na figura, indo do triângulo “a” – mês de janeiro - até o triângulo “f” – mês de junho). Neste momento, o nascer do sol já está na posição “4” (solstício de inverno) e começa a se deslocar em sentido oposto. A marcação no calendário lunar também pode começar a ser feita no sentido oposto, de cima para baixo na figura (indo do triângulo “g” – mês de julho, até o triângulo “l” – mês de dezembro).

Pode-se observar também que as linhas opostas marcadas com as posições 1’, 2’, 3’ e 4’ marcam as posições do pôr-do-sol nas mesmas datas. O eixo de simetria principal da figura está alinhado com o eixo solsticial principal (nascer do sol no solstício de verão e pôr-do-sol no solstício de inverno), que é o mesmo alinhamento empregado em outros calendários astronômicos pré-históricos, como o de Stonehenge na Inglaterra e as construções Incas no Peru.

Posicionada entre o nascer do sol (linhas vermelhas, na parte inferior da figura, a leste) e o pôr do sol (linhas vermelhas, na parte superior da figura, a oeste) está a imagem central do petroglifo: um conjunto de três figuras concêntricas, fechadas, cada uma delas formada por dois triângulos justapostos pelos seus ápices. Destacamos essa parte da inscrição em linhas azuis na Figura 4. Podemos supor que esta imagem represente a Terra: um ambiente fechado submetido à influência forte da passagem do sol por sobre ela. O eixo principal da figura, que representa o movimento entre o nascer e o pôr do sol, parece comprimir a figura em seu centro, que então se divide em duas partes. Cada parte parece representar um semestre do ciclo solar. Todas as seis linhas da parte direita da figura, em seus prolongamentos, apontam precisamente para cada um dos seis triângulos (de “a” até “g””) do primeiro semestre no calendário lunar. Seguindo o prolongamento, as linhas azuis da metade esquerda da figura devem corresponder aos triângulos do segundo semestre do calendário lunar (de “h” até “l”).

Deste modo, doze meses lunares passam pela terra, ao mesmo tempo em que o sol percorre um ciclo anual completo.

Voltando agora a Figura 2, pode-se notar pela sombra de um dos pilares verticais da passarela que o nascer do sol está ocorrendo precisamente entre as posições “4” e “3” do calendário solar. A fotografia foi feita em 21 de julho, cerca de um mês após o solstício de inverno. O nascer do sol já se aproximava da posição “3”, que indicaria o fim do frio mais intenso.

A maioria dos sambaquis em sítios arqueológicos catarinenses é datada por volta de 4.000 anos atrás, aproximadamente. É possível que as inscrições rupestres do Morro das Aranhas, na Praia do Santinho, tenham essa idade. É bonito perceber que, há 40 séculos, pessoas dos povos sambaquieiros observaram com inteligência o mundo a sua volta e construíram um instrumento tão preciso (e esteticamente simétrico e belo) para contar os ciclos astronômicos, medir a passagem do tempo e provavelmente assim auxiliar em seus planejamentos de coleta, caça e pesca, buscando uma vida melhor. Ali já estava a ciência, a técnica e a arte, gravada em pedra, chegando até nossos dias. O sol já cumpriu seu ciclo completo de mudança na posição de nascer, no horizonte, 4000 vezes deste então. Seria bonito também, de nossa parte, compreender e preservar essa bela herança deixada por nossos ancestrais.


(Para maiores detalhes, leia o artigo completo em:


 
 
 

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